Crónica de Jorge C Ferreira | Esta curva apertada do tempo

Jorge C Ferreira

Crónica de Jorge C Ferreira
Esta curva apertada do tempo

 

Meu mundo, meu planeta, meu azul. Temo por ti, já não por mim. Quantos mísseis, quantas bombas, quantos drones, explodiram no teu céu e no teu solo ultimamente? Quantos mortos? Quantos mutilados? É a guerra a tornar-se total. A expandir-se, a crescer, a tornar-se o nosso dia-a-dia. Guerra sempre presente nos canais de notícias, vinte e quatro horas por dia. O sangue que sai da televisão a inundar-nos a casa. Nunca tinha visto tantos Generais, Majores Generais e Coronéis, Politólogos, Sociólogos, Comentadores e aprendizes de feiticeiro. Palavras e termos técnicos em estrangeiro, como convém. Pós e fumos. Quase salas de seres com poderes adivinhatórios. Há alguns que são donos de informações privilegiadas, que fazem pensar de onde surge tamanha sapiência.

jcferreira livro

Começamos a perceber as discussões que têm aparecido para além da guerra, ou não. O Serviço Militar Obrigatório, que abomino, e O Deus Pátria Família, (ainda se lembram da vozinha do Botas?), que me dá vontade de vomitar. Nestes tempos de turbulência, aparecem todos os fala- baratos. Gente que representa outra gente. Representações tentaculares. Tudo se liga. Estão espalhados pelo mundo e servem-se e servem religiões e seitas.

Estamos num momento de comemorar e não esquecer. Cinquenta Anos de cravos que foram passando de mão em mão. O regime esboroou-se, os pides ainda mataram nesse dia, não se esqueçam, eram assassinos profissionais. Lembro-me de uma foto do Eduardo Gageiro, de um em cuecas. Um fulano de bigode com ar de quem tinha perdido a virilidade. A revolução foi branda para com eles. Mas a PIDE acabou. A Guerra Colonial acabou nesse dia, embora oficialmente só algum tempo depois, o malfadado Serviço Militar Obrigatório deixaria de fazer sentido e viria a morrer de forma demorada, mas terminou e foi enterrado sem pompa nem circunstância. Foi o fim da “carne para canhão”. Que alívio o nosso.

Muitos foram para Caxias esperar pela libertação dos presos políticos. Notícias controversas. Os nervos em franja. Uma voz única dos presos: ou saímos todos ou não sai ninguém. Demorou mais tempo, mas saíram todos. A alegria disparou em lágrimas e palavras de ordem inventadas no momento, ou copiadas do Chile do saudoso Salvador Allende e Pablo Neruda. Muitas ainda choravam os acontecimentos de 1973 no Chile. Foram os abraços, os beijos, os punhos erguidos, uma alegria única.

No dia Primeiro de Maio seguinte foi feito o maior referendo de sempre em Portugal. Optámos pela Liberdade. Todos conheciam todos. Aí sim, não tenho dúvidas, fomos: TODOS/TODOS/TODOS. Poetas, operários e a Poesia na rua. Estávamos felizes. Ideias diferentes e, no entanto, juntos. Perder o medo. Ganhar confiança e direitos. Os militares, que eu não apreciava, eram os heróis daquele tempo único que vivemos. Enchemos Avenidas, Alamedas, Ruas e Praças. Gritámos até ficarmos roucos. FOMOS O VERDADEIRO POVO UNIDO, o que jamais será vencido.

Ouvimos alto as músicas proibidas. Começaram a aparecer os livros que tinham sido proibidos e os filmes sem cortes. A censura tinha terminado pela coragem da desobediência. Os tipos do lápis azul foram pura e simplesmente ignorados.

No entanto, tudo ainda estava por acontecer. Estávamos só no tempo do sonho.

«Sabes, estou com medo de tudo isto. Os cravos são sempre lindos. Mas as guerras!»

Fala da Isaurinda.

«Eu sei, minha Amiga, estamos numa curva apertada deste tempo. Mas vamos acreditar que vamos vencer.»

Respondo.

«Deus te ouça, deus te ouça…»

De novo Isaurinda, e vai, a benzer-se.

Jorge C Ferreira Abril/2024(434)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n. 1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor publicou as seguintes obras: A Volta à Vida à Volta do Mundo (Crónicas de Viagem) Editora Poética (2019) Desaguo numa Imensa Sombra (Poesia) Editora Poética (2020) 60 Poemas mais um (Poesia) Editora Poética (2022) O Mundo E Um Pássaro (Crónicas Vol.I) Editora Poética (2022) O Mundo E Um Pássaro (Crónicas Vol.II) Editora Poética (2024) Participação em Antologias: A Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence (Poesia) Antologia Luso-Francófona Editora Mosaico das Palavras (2018) Poetas do Reencontro (Poesia) Antologia Galaico-Lusa Editora Punto Rojo (2019) A Norte do Futuro (Poesia) Homenagem poética a Paul Celan Editora Poética (2020) Sou Tu Quando Sou Eu Homenagem À Amizade (Poesia) Editora Poética (2021) Água Silêncio e Sede Homenagem Poética a Maria Judite Carvalho (Poesia) Editora Poética (2021) Ser Mulher IV As Palavras (Poesia) Editora Mosaico das Palavras (2021) Nem Sempre Os Pinheiros São Verdes II Editora Poética (2022) Representado na Revista Pauta nº9 com um Poema (2022)

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20 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Esta curva apertada do tempo”

  1. José Luís Outono

    Estimado amigo, depois de ler as verdades dos teus sentires, interrogo-me nesse espelho gritante, num mar sucessivo de interrogações … até quando?
    A loucura juntando à brutalidade, é um complexo jogo de interesses, nunca respeitadores de humanos, e do ambiente que cada vez mais se turva de momentos negros.
    E muito me custa, olhar para despachos jurídicos, onde o lado teatral da defesa, conjuga verbos em acordos de nulas sentenças, e a liberdade bate à porta, como se nada tivesse sucedido.
    Cada vez mais ao acordar, questiono-me se ainda sou, ou já não estou … para rimar.
    Brilhante crónica do teu escrever, e do teu reflectir livre, mas cada vez mais interrogativo do segundo seguinte.
    “Deus te ouça” … exclama muito bem Isaurinda.
    Grato abraço, amigo que muito estimo e admiro!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado José Luís. Meu Amigo, Poeta. Enquanto tivermos força vamos lutar pelos nossos sonhos. Aqueles sonhos que nor ardiam na cabeça após aquele dia único. Vamos descer as Avenidas da Liberdade. A minha imensa gratidão por tudo. A minha estima num abraço.

  2. Clara Figueiredo

    Eu estava lá… Angola, num palco que não era o meu, mas a acompanhar um militar de vinte e dois anos,com quem era casada. Pisei chão minado numa inconsciência dos tao poucos anos e na ignorância do muito que viviamos sem querer.
    Eu voltei passado dois meses num avião militar, onde todos gritaram
    a liberdade e se cantou até á exaustão “cheira bem, cheira a Lisboa”!
    Que tudo que foi conquistado não morra pelas teorias dos senhores das guerras e dos poderosos. Que os nossos filhos não sofram o que sofreram os nossos pais, com isso de que se torna a falar … serviço militar obrigatório, em honra da pátria, Deus e família …

    Fico mais doente só de pensar…

    Abraço meu amigo…e por mim, eles não passarão! Eu vivi na pele a ditadura da guerra do ultramar… entrei em hospitais militares e sei o que sofreram os homens/crianças ainda, a quem ensinavam a matar ” terroristas”… que olhavam para nós com a mansidão das vítimas inocentes.
    E muito mais havia para contar…

    Boa a sua crónica. Muito obrigada 😘🥀

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Clara. Tempos da guerra, tempos horríveis. A ditadura acéfala. Sim, minha Amiga, não passatão. Defender a Liberdade. 25 DE ABRIL SEMPRE. A minha gratidão imensa. Abraço grande.

  3. Clara Figueiredo

    Eu estava lá… Angola, num palco que não era o meu, mas a acompanhar um militar de vinte e dois anos,com quem era casada. Pisei chão minado numa inconsciência dos tao poucos anos e na ignorância do muito que viviamos sem querer.
    Eu voltei passado dois meses num avião militar, onde todos gritaram
    a liberdade e se cantou até á exaustão “cheira bem, cheira a Lisboa”!
    Que tudo que foi conquistado não morra pelas teorias dos senhores das guerras e dos poderosos. Que os nossos filhos não sofram o que sofreram os nossos pais, com isso de que se torna a falar … serviço militar obrigatório, em honra da pátria, Deus e família …

    Fico mais doente só de pensar…

    Abraço meu amigo…e por mim, eles não passarão! Eu vivi na pele a ditadura da guerra do ultramar… entrei em hospitais militares e sei o que sofreram os homens/crianças ainda, a quem ensinavam a matar ” terroristas”… que olhavam para nós com a mansidão das vítimas inocentes.
    No E muito mais havia para contar…

    Boa a sua crónica. Muito obrigada 😘🥀

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Clara. Abraço enorme

  4. Sofia Barros

    A minha mãe sempre dizia que o primeiro 1º de Maio tinha sido um dos dias mais bonitos que ela vivera.
    Hoje, cinquenta anos depois, assisti, em Sintra, a um espectáculo de homenagem aos Anónimos de Abril.
    É um gosto, além de um quase dever, lembrarmos estas datas e as memórias, vividas na pele, ou através do que nos contaram.
    Que a liberdade passe sempre por aqui.
    Um abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Sofia. A tua Mãe tinha razão. Foi um sonho belo. Acreditámos que o futuro estava na palma das nossas mãos. Conheci a tua Mãe numa manifestação no tempo da troika. Encontrámo-nos no último 25 DE ABRIL. A minha enorme gratidão. Abraço enorme

  5. Maria Luiza Caetano Caetano

    Uma forma inteligente e sábia como descreve, o momento que vivemos. Saborear a Liberdade.
    Concordo plenamente, com cada palavra sua. Um verdadeiro filme, passou sob os meus olhos.
    Ninguém deve esquecer os cravos de Abril. “Todos/Todos/Todos.”
    Lembremos que, “O Povo Unido Jamais Será Vencido.”
    Estejamos atentos,a “Esta curva apertada do tempo.”
    É maravilhoso o que escreveu, pois marca um momento histórico e irrepetivel. 25 de Abril Sempre.
    Obrigada, poeta livre e sempre atento.
    Abraço grande.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado, Maria Luiza. Tão bom estar aqui. A liberdade é frágil, temos de a cuidar bem. Sabemos o que custou a conquistar. Somos testemunhas da euforia que se viveu. No acreditar num futuro de luz. A minha gratidão. Abraço enorme.

  6. Filomena Geraldes

    meu escrevinhador
    somos de um quase mesmo tempo…
    numa madrugada desperta por quem
    apregoava que um estranho perfume
    pairava pela cidade e as palavras já
    eram livres como aves, tudo aconteceu.
    aconteceram profecias.
    foi um rasto de trovas, os sonhos
    a transpirar na pele, o rosto da
    esperança espiando todos os espelhos, a primavera a resistir
    em todas as frentes aos ventos
    agrestes, os poemas a dobrar as esquinas e a liberdade a deixar-se adivinhar…
    não! jamais dores suspensas, um país adiado e lâminas a cortarem as palavras.
    não! jamais os gritos de guerra, as
    brumas, os esconderijos e os vincos do medo .
    escreves sobre o fim dos cativeiros e
    és o “profeta” da liberdade.
    abril é memória, verbo e a geografia
    de novos caminhos
    a estrela cadente
    a semente
    a seara.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Mena. Que bom estares de volta. Tens sempre poemas no mais fundo de ti. Poemas com que nos presenteias neste espaço. 25 DE ABRIL SEMPRE. A minha gratidão. Abraço grande.

  7. Regina Conde

    Vivi, senti, nunca se esquece a beleza da Liberdade. Tantos filhos de Abril. Alguns são filhos de farsantes. O 25 de Abril foi cumprido. O que se passa Portugal é inanarravel. Não vejo telejornais, ali crescem seres que me incomodam. Faltam-nos ao respeito sem qualquer pudor. Ainda assim acredito que o 25 de Abril é muito forte. Vai continuar. Sempre!!! O mundo é de cor conzenta e vermelha e muito fumo. Agora, querido Amigo os meus sinceros parabéns pela magnífica crónica, escrita com alma, com gana de quem és. Um Poeta Livre. Obrigada Jorge. Abraço-te.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. A tua presença é sempre bem-vinda. Vamos resistir. Sempre soubemos reconhecer os vermes. Vamos derrotá-los. 25 DE ABRIL SEMPRE. A minha gratidão. Abraço grande.

  8. Eulália Coutinho Pereira ou

    Bela crónica. Tão bem escrita, tão real.
    É indescritível a felicidade que se via em cada rosto. Sorriso rasgado. Não se sabiam pormenores. Liberdade corria de boca em boca.
    A verdadeira festa aconteceu no primeiro 1 de Maio . As praças, as ruas ficaram cheias. As canções escondidas saíram a rua.
    Em plena juventude, na idade em que todos os sonhos eram possíveis, aquele dia ficou para sempre na memória.
    Que privilégio fazer parte desta geração.
    Hoje, tantos anos passaram, com alegrias e tristezas e muita desilusão.
    Assistimos em directo á destruição dos homens e do planeta.
    O ódio e a vingança dominam o mundo.
    É a guerra que não fazia parte dos meus sonhos.
    Obrigada Amigo, por estar sempre desse lado.
    Um abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. Esses dias belíssimos que vivemos! Essa alegria imensa. Os sonhos que ainda mantemos. A coragem. 25 DE ABRIL SEMPRE. A minha gratidão. Abraço enorme

  9. Branca Maria Ruas

    Tens muita razão em tudo o que dizes.
    Também vivi esses tempos em que o sonho falava mais alto e todos viveríamos em harmonia numa sociedade mais justa, menos desigual, com vidas dignas para todos.
    Infelizmente os sonhos foram-se diluindo e muito do que desejámos ficou pelo caminho.
    O mundo não é um lugar seguro. Terminou uma guerra mas outras guerras começaram. Quantos inocentes a morrer em cada dia…
    Estamos, sem dúvida, num curva apertada do tempo. A liberdade e a democracia estão ameaçadas. Mas a multidão de gente nova a desfilar na Avenida da Liberdade no passado dia 25 trouxe-me esperança. Aqueles rostos e sorrisos que encheram a Avenida iluminaram os meus dias.
    Espero e desejo muito que o futuro consolide a Liberdade que há 50 anos nos ofereceram e que a Democracia fortaleça.
    Não podemos derrapar nesta curva apertada. Depois da curva alcançaremos a estrada menos sinuosa e mais segura.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria. Bonito o que dizes. Vamos, enquanto a força nos permitir, continuar a descer a Avenida. Vamos continuar a sonhar. Não passarão! A minha imensa gratidão. Abraço enorme.

  10. Lénea Bispo

    Ainda homenageamos o 25 de Abril como a nossa grande libertação de um regime totalitário em que só havia uma voz única ,sem o contraditório a estragar – lhes os planos . Vivemos um período que queríamos esquecer de tão tenebroso que foi , mas não esquecemos , e este ano , nesta homenagem ao 25 de Abril, nunca dantes vista,, em que se faz a festa da liberdade, mais uma vez fizemos o contraponto entre a Luz que agora nos ilumina e a Sombra em que vivemos antes. Melhor dizendo, as trevas!
    Mas a guerra não acabou no 25 de Abril, nem ” de júris” nem ” de factum”. Depois do 25 de Abril , no Norte de Angola , em Samza Pombo , ainda houve um ataque terrorista ao quartel. Com muitos feridos graves Não sei de mortes, mas certamente também.
    É a pedra na engrenagem que por vezes não deixa a máquina funcionar bem .
    Contudo, hoje vivemos a Paz e oxalá para sempre .

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Lénea. Que bom estar aqui. Continuamos a viver em Liberdade. Mas não a podemos considerar um bem adquirido. Temos de a cuidar. As revoluções têm, por vezes, coisas improváveis podem acontecer.
      A minha gratidão. Abraço enorme.
      Nota: terrorista não. Decidamente seriam guerrilheiros a lutar pelo seu ideal.

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